terça-feira, 18 de janeiro de 2011

RITA LEE PRA LÁ DE BABILÔNIA (MATÉRIA DA REVISTA MANCHETE NO ANO DE 1978)

RITA LEE PRA LÁ DE BABILÔNIA

“Creio que esta foi a primeira entrevista que eu não dei.” Rita inclina a cabeça e atira seu perfil lindo contra o teto. Levanta um angorá branco. Como um troféu. Beija-o na boca. “Preciso engordar, fazer plástica, ir mais à praia. Tudo que Rita não precisa ela afirma com segurança absoluta. Quando se trata do supérfluo. Ela sem duvida é uma estrela. Porque tem brilho próprio. Ela sem duvida é país, cidade, Cidade e capital. Limites, Fronteira, Rios ,lagos , montanhas. Não decende nem do general nem das calças. Seu pai. Origem sul dos Estados Unidos (como o Lee). Índios e gringos. Sua mãe vem de terras onde corre o nosso sangue: Itália. “meu pai, entretanto, é um matuto” – diz Rita com orgulho – “tipo música caipira. Fã de Inezita Barroso. Sabe que ele nunca assistiu qualquer show que eu fiz?” diz sem magoa. Até com um suspeito orgulho. “Minha mãe? Minha mãe é layout da italiana. Até com um certo exagero. Minha mãe poderia perfeitamente ser o papa. Minha mãe, meu pai, minhas duas irmãs. Família. Uma coisa que me preocupa muito. Pesquiso. Quero saber de onde eu vim. Gostaria de ser hipnotizada. Para ir alem do útero materno. Chegar ao antes de Rita, Pai, filho, espírito santo. Faço desse triângulo um quadrado. Incluo meus mistérios e equilibro minha cuca.”
“Ai está um depoimento sincero. Adoravelmente louco. E lúcido.”
VIAGEM ATRAVÉS DE RITA LEE
Você pega linha, disca o telefone, ai chega ao teatro. Passa por Wellington – sócio da trampo – vai seguindo até Célia, um porto muito agradável. Em Célia você mostra o seu passaporte. Suas credenciais. Tudo em ordem. “Rita Lee está em Guto Graça Mello: cinco em ponto. Hora do chá. Ai você – cheios de medo – chega em Rita Lee. Chegou ta chegado. Ou não está Passei dois dias em Rita. Visitei marido,filho, babá. Vencemos nossos temores e combinamos que, sem datas, ela contaria sua historia.
“Só me lembro do dia que nasci: 31 de dezembro. Véspera de primeiro. Isso me grilou muito durante algum tempo. Hoje  me ajuda. A véspera atiça, empurra, obriga. A idéia de que nada do que faço é definitivo é a razão da minha perseguição ao melhor.
Tudo começou em São Paulo. Ano 47. Ao sul, o pai de cujos descendentes nasceu  a cidade de Americana. Ao norte, a mãe. Filha de emigrantes, base Rio Claro. Classe média pra baixo. Daí a necessidade de que  as três irmãs estudassem em bons colégios. 15 anos  cumpridos por mim no Lycée Pasteur. Antes a irresponsável infância. Nela o meu sangue de índio. Adorava acampar no quintal. Dormi na cabana que eu construía. Como construir todos os meus brinquedos . Não transava com bonecas e jamais – infância é jamais – tive bicicleta ou vitrola. Radio foi o meu primeiro contato com o som. Radinho safado cheio de chios. Daí minha necessidade quase vital  de som. Muito e bom. Em alto e bom som. É como eu sou hoje.
Minha primeira Irmã razoavelmente mais velha, era a dona do rádio.  E amava Cauby Peixoto/Ângela Maria, as grandes bandas americanas – tipo Glenn Miller, Tommy Dorsey. Ela evoluiu até Ray Charles. A segunda irmã foi encurtando informações. Que eu ouvia atenta: Dolores Duran, Tito Madi e, sem dúvida,  João Gilberto além do séquito da bossa nova – olha muito  azul nos meus olhos – algo mais avançado. Neil Sedaka e Paul Anka seus preferidos em inglês. Mas no colégio tinha uma vitrola onde eu podia ouvir além. Elvis Presley conheci no colégio Mamas end Papas também. Ai comecei a criar meu próprio enfoque e, sem saber, já era viciada em música. Tipo dependente. O rebolado  de Presley! Com esses dados todos programei um conjunto. Colégio feminino: Tean Age Singers. Tudo pelo meu grupo. Inclusive o baile de formatura. Papai, prefiro uma bateria. Vestido de baile, valsinha, colar de perolas? Não, eu quero minha bateria. E ganhei. Tocava mal paca num instrumento ruim paca. Mas fazia cara de que “tudo bem”. Pintava os Beatles. E numa festa de muito som conhecemos o Sérgio e o Arnaldo. O pai secretário do Ademar de Barros. Daí os ricos e sofisticados instrumentos e som dos meninos do colégio Caetano Veloso. Trocamos  idéias e misturamos o grupo. Peneirando, peneirando, formamos Os 6. Enfrentamos muito imaturos a jovem guarda de Roberto Carlos. As críticas. As autocríticas. Brigas. Os seis viraram três. Arnaldo, Rita e Sérgio.
“BRASIL: GRANDE QUINTAL DOS DISCOS -  VOADORES, ONDE ESTÃO OS CONTATOS DE TODOS OS  GRAUS”
“Freqüentamos  os programas da época. Simonal, Astros do disco, A Grande Parada, Móbile e fizemos vocais para Tim Maia que chegava dos Estados Unidos. Os ouvidos sempre alerta de Chiquinho Morais iam passando e o primeiro convite renderia frutos (proibidos?). Vocal para Nana Caimmi que preparava o Bom Dia para defender no festival.
Além de Nana, muito além de tudo: Gilberto Gil. Dedilhando um violão que nos desbundou. A guitarra de Sérgio bateu no peito de Gil. E desta permuta idéia de um trabalho juntos. Gil pra mim. Entre outras coisas, é chefe de uma tribo ainda não identificada. E com sua já imensa sabedoria explicou dos riscos que corríamos cantando/tocando música brasileira com guitarra e adjacências . Domingo no Parque. O homem mostrou a coisa. E, claro, topamos. Alegria , medo , prazer, pavor, orgasmo. As emoções que consigo definir ainda na minha cuca desplugada do passado. Clima de Festival. A música brasileira está sendo poluída. Fizeram a cabeça dos galos. Então o auditório, as galinhas. Suor, medo, agressão sonora. E a pontaria certeira de um fanático. Um ovo explodiu no meu rosto. A mim coube um ovo. Outros detritos no resto do grupo. Mas entre ovos e detritos a música maior de Gil. Ali nasceu tudo.inclusive o visual que programam. Roupas muito loucas. Talvez para sermos um alvo mais fácil. Guerra é guerra.
Adoramos. E a profecia de Gil se fez cumprida. Passamos a ser os Malditos. Amaldiçoados por grande parte da imprensa forte. E seguimos o rumo aos rumos de Gil. Vários trabalhos com ele. Sucata, inclusive Caetano.
Divino Maravilhoso, um programa muito louco na TV Tupi de São Paulo. Alguma coisa mais forte, imponderável  mesmo, começou a aderir ao nosso brancaleone  - nossas tropas eram pequenas porém fanáticas. Os Mutantes enfrentaram todos os Festivais da Record e da Globo. O discurso diabólico de Caetano Veloso, É proibido proibir, refletiu. E nós éramos, de certa forma, seu espelho. Concorremos a vários festivais  sempre com os abaixo assinados. Conta nosso visual/músico/instrumental. A guitarra era um insulto. Eu, vestida de noiva grávida, ou mostrando as pernocas, uma agressão que doía demais nos colegas do oficio e na multidão.

  E grande parte da imprensa dizendo amém . Ação, reação aquilo que todo mundo sabe. Então, a fase de camicase. Nós contra todos. E um resultado facilmente previsto. Pressões de todos os lados. E os discos dos Mutantes eram retirados de catálogo pelas gravadoras que se alimentavam da imprensa/divulgação. Estilingues contra tanques. Sufocados, começamos a perder de fora pra dentro. Até que todos perdemos entre nos próprios. Esgotamos munições. Até no comportamento fora do palco.
Meu casamento com Arnaldo – dos Mutantes – foi um grande deboche. OX “toureiro casou com a noiva grávida”. Eu vivendo um esquema tribal. Separação de corpos. Casamento com separação de corpos. É isso ai. Fui morar na Cantareira. Lá morávamos muitos músicos do nosso grupo. Até meu marido, às vezes. Cortando caminho: velocidade de comportamento que imprimimos já passara em muito do nosso controle. As rodas giravam além do possível. A maquina espatifou-se num Festival onde resolvemos cantar um samba feito por mim,  Pelo Sérgio, o Arnaldo e mais uns dois: Mande um abraço pra velha. Contra tudo eu lutei. Mas contra todos seria impossível. Comprei um sintetizador. Para os Mutantes meu passo passava do previsto. Perninhas de fora, uma letrinha vez em quando, programação de um visual, um pandeirinho, tudo bem. Sintetizador? Essa não. E o “clube do Bolinha” – menina não entra – acabou por me fazer sair. Partir para outro esquema. Projetada pela lei da inércia. Quando estampamos nossa máquina  a milhões por hora. A síntese: um sintetizador. Aliás a minha cara. Não tenho cara de sintetizador?  E, num de repente, descobrir que também tinha talento. O bicho que mora em mim me guiou até a uma casa na represa Guarapiranga. Lá trabalhei um tempo com o pessoal da revista Rolling Stones. Parei 9 meses. Outra gestação. Campo cheio de mato. E as primeiras composições frente ao espelho do lago: Mamãe Natureza,  Esse tal de rock’n Roll  - que eu também queria saber – e outras coisas. Retornei com Lúcia Turnbull. Violão acústico. Vaias. Phono -73. Olha ai uma data! Então, saquei minha paixão: a eletrônica. Som.  Nos porões do Ruth Escobar formamos o Tutti-Frutti. Gosto de trabalhar com grupos. Ai Monica Lisboa pintou. E, com ela, minha quase falência pessoal e jurídica. Ia me esquecendo que entre os dois grupos tentei um suicídio. Bem hollywoodiano. As pílulas. O tempo de ser socorrida. Um namoro com a morte. Porque eu sou muito tudo. Mágico espelho meu existe maior m... do que eu? Ato continuo o suicídio. Eu não poderia ser testemunha da minha morte.
Até além do útero eu viajo. Quero. Depois de mim é demais. E nada como uma tentativa frustrada. Induz. Superei fase programa da Phonogram. Em esquema eu não entro. Não tenho vocação para estrela. Gravei um disco Atrás do Porto Existe uma Cidade. Eles não acreditaram. Pintou João Ricardo, ex-Secos e Molhados. E a cobertura pop foi transferida para ele. Fui para a Som Livre. Livre mesmo.

Só sei trabalhar em equipe. Já na Phonogram  tínhamos uma pequena infra-estrutura que programava os visuais, a capa, os cenários. Gente da Moca mas gente boa. Não acreditaram. A Som Livre possibilitou a Trampo, máquina que desliza sem interferir no meu trabalho pessoal. Roberto de Carvalho, entre outras coisas meu adorado marido, colocou tudo nos eixos. Continuo investindo nos meus shows, cada vez mais profissionais. Programação visual, luz, som, tudo de primeira.
Fora do palco moro em casa alugada e não tenho nem um fusca. Positivamente  eu não sou uma estrela ... Fruto Proibido, meu primeiro disco livre, virou show. Que andou Brasil. Ovelha Negra puxava o barco. Uma retomada de tudo. Minhas pazes comigo e com o público. O ovo na cara, gostosa memória. Ainda pobrinho  porém muito legal, satírico porém cheio de um sadio humor, o Fruto Proibido tinha a cara do título. Ai as bruxas conspiraram contra mim. Entradas e bandeiras. Tudo investido num espetáculo. Primeiros dias. Não dei bandeira mas foi a minha entrada na prisão. Os homens estavam numa de apresentar serviço. E eu fui escalada. Mesmo grávida. Um jogo armado. Muito bem armado. Só me restava assumir.” - Rita Lee na cadeia.
 Como foi?
- No DEIC, três dias de horror. Risos sarcásticos. “Uma ovelhinha nova no meio dos leões.” Em pânico cheguei no presídio. X-21 (xadrez 21) obviamente proibida pela censura. Até o Mendonça um tremendo sapatão – que usava cuecas  - , me beijava a mão como um  gentleman  ... Meu filho preso as minhas entranhas acalmou. Depois de 15 dias deixei um pessoal  simplesmente sensacional! Prisão domiciliar. Equipamento aprisionado, advogado por pagar , empresaria inescrupulosa. A manada de bodes pretos. Que se foi diluído. Então veio o meu up.
Se a montanha é russa acontecerá a subida. Refestança  com Gil. Tipo Brasil. Com o Tutivela e o Refafruti  - união dos nossos grupos – começou Rio/São Paulo e cresceu de cima em baixo. Então, já numa boa, pintou a Babilônia. Arrombou a Festa foi um compacto que me colocou as finanças em dia. A Som Livre foi legal. Adiantou a grana na fase braba. Mas ela não é mãe de ninguém. Toma chocolate, paga lo que deves.  -  Enfim, a maior estrela pop saiu do vermelho.
- Diz o pessoal que cuida da minha grana que sim. A equipe da contabilidade não pisa no palco e vice-versa. Eu Roberto e nosso filho somos outro departamento. Trabalhamos em sincronismo, numa perfeita harmonia e o resultado é esse show   feliz, sério, assumido. O superimpulso.  O público gosta e merece tudo que invisto num melhor som, num melhor visual, num comportamento tão sincero do nosso grupo que nem mesmo uma Babilônia rompe os elos.
Não tenho trilhos nem teto. Tenho um grande prazer de realizar tudo isso. Assim. Compatível. Babilônia. Sabe, organizaram minha bagunça. Hoje já não acho que para ser pop a coisa tem de ser esculhambada, despojada, troncha. Eu me permito até aos limites do limite. É bem verdade que meu limite é ilimitado. Babilônia é a síntese do começo e do fim. Com a música por testemunha. Babilônia  sou eu. Que tem uma atração sexual pelos quintais da morte e ama o filho, o marido, o pai caipira, a mãe-meio-papa. A lassidão durante esse chá que estamos tomando e o olho ligado no pulo do gato.
-  O espelho mudou de resposta? – O espelho é minha contabilidade. O dever e o haver. Que tal uma engordadinha? Esse cabelinho está legal? Olha essa foto, uma plástica... ai volto para as origens. Índios e astronautas, minha família. Quanto mais eu souber de onde vim, mais saberei para onde vou. Solidão. Tenho medo de barulho que  o silencio faz. Milhões de decibéis. Medos muitos. Canto quando estou no escuro. Tenho um Deus meu. Meu como uma impressão digital. De onde eu vim pergunto aos meus pais. Pra onde eu vou pergunto – em vão – ao meu filho. Ao meu marido. E me sobe um gosto de medo que me empurra para a luz, o som, a zorra. Cada vez mais. Um pulo do gato. Nem no salto nem no toque. Durante Voando. É o point  of no return. O risco. Assumo o impulso que estou dando. Porque estou estupidamente feliz. Amanhã vou à praia.
- Ufos ou óvnis – Cada um saca o Apocalipse  à sua maneira. O arco íris é um código de um certo lugar. Eu também queria saber  o que esta por trás dele. Sabe de uma coisa? No Brasil estão todos os contatos  de todos os graus. O grande quintal dos discos-voadores é aqui. Chi, que horas são? Tenho que ir a Babilônia me espera. E numa festa dessa eu sou a primeira a chegar...
Abaixo a matéria na revista Manchete: 1978
fonte: revista manchete 1978

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